“ECCE HOMO – Ou como se chegar a ser o que se é”
Capítulo “Porque Sou Tão Sábio”
Por Friedrich Nietzsche (tradução de Artur Morão)
Capítulo “Porque Sou Tão Sábio”
Por Friedrich Nietzsche (tradução de Artur Morão)
“A ausência de ressentimento, a clarividência sobre o
ressentimento – quem sabe se, em última análise, por elas devo também
ser grato à minha longa enfermidade? O problema não é simples: há que ter feito
a experiência a partir da força e também da fraqueza. Se algo em geral se deve
objectar contra a doença, contra a fraqueza, é que nela o genuíno
instinto da cura, isto é, o instinto de defesa e de combate, se
enfraquece no homem. Não sabemos desembaraçar-nos de nada, não sabemos acabar
seja com o que for, nada sabemos repelir – tudo nos fere. O homem e a coisa
aproximam-se de modo obstrutivo, as vivências afectam-nos com demasiada
profundidade, a recordação é uma ferida purulenta. Estar doente é também
uma espécie de ressentimento.
Contra isto o doente tem apenas um grande remédio – dou-lhe o nome de
fatalismo russo, aquele fatalismo sem revolta, com que um
soldado russo, para o qual é demasiado dura a campanha, se deita por fim na neve.
Nada mais tomar em geral, não absorver em si seja o que for – não mais
reagir… A grande razão deste fatalismo, que nem sempre é apenas a
coragem para a morte, conservador da vida nas circunstâncias para ela mais
perigosas, é a redução do metabolismo, o seu retardamento, uma espécie de
vontade de hibernação. Alguns passos mais nesta lógica e tem-se o faquir, que
dorme durante semanas num esquife… Porque o homem se esgotaria demasiado
depressa, se em geral reagisse, então não reage: eis a lógica. E com nada mais
ele se consome a não ser com os afectos do ressentimento. O despeito, a
susceptibilidade mórbida, a impotência para a retaliação, a inveja, a sede de
vingança, o que há de venenoso em cada sentido – eis decerto, para o esgotado, o
modo mais desvantajoso de reagir: condiciona-se assim um rápido desgaste de
energia nervosa, uma intensificação doentia de secreções nocivas, por exemplo, a
bílis no estômago. O ressentimento é em si o que está proibido aos
doentes – o seu mal: infelizmente, é também a sua tendência mais
natural.
Isso foi o que entendeu muito bem aquele profundo fisiólogo,
Buda. A sua «religião», que antes se deveria denominar
higiene, para não a confundir com coisas tão lastimosas como o
cristianismo, fez depender a sua eficácia da vitória sobre o ressentimento:
libertar dele a alma – eis o primeiro passo para a cura. «Não é pela inimizade
que se chega ao fim da inimizade, é pela amizade que se põe fim à inimizade…: eis
o começo da doutrina de Buda – aqui não fala a moral, mas a fisiologia.
O ressentimento, nascido da fraqueza, a ninguém é mais nocivo do que
ao próprio fraco – noutros casos, onde o pressuposto é uma natureza
rica, um sentimento excessivo , um sentimento de que assenhorear-se é quase a
prova da riqueza. Quem conhece a seriedade com que a minha filosofia empreendeu a
luta contra os sentimentos de vingança e de simpatia até à doutrina da «vontade
livre» – a luta com o cristianismo constitui apenas um seu caso particular –
compreenderá porque é que aqui trago à plena luz a minha conduta pessoal, a
minha segurança do instinto na prática. Nos momentos da décadence,
interditava-os a mim como nocivos; logo que a vida se tornava de novo rica e
assaz altiva, opunha-me a eles como abaixo de mim. Aquele «fatalismo russo», de
que falei, emergiu em mim porque me ative tenazmente, ao longo dos anos, a
situações, lugares, habitações, companhias quase insuportáveis, após me terem
sido dadas por acaso – era melhor do que modificá-las, do que sentir que se
poderiam modificar – do que contra elas se rebelar. Considerava
então como mortalmente mau o que em semelhante fatalismo me perturbava e dele à
força me despertava: – na verdade, isso era de cada vez mortalmente perigoso. –
Considerar-se a si mesmo como um não querer ser «outro» – tal é
em semelhantes circunstâncias a própria grande razão.”
(Dharmalog)
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